Quando eu era criança, há coisa de 30 anos atrás, o mundo me parecia um lugar imenso, quase infinito, e o tempo arrastava-se com uma lentidão que conferia à vida uma dimensão épica. Meu quintal era um reino onde eu era completo, envolto por seu espaço acolhedor, que me protegia do mundo lá fora. Sair do bairro onde eu morava e ir até o “centro” da cidade, por exemplo, era uma viagem. Viajar para o Japão era uma odisseia impossível, senão para uns poucos privilegiados, que por alguma razão visitavam o “outro lado do mundo”. E quanto ao tempo? Um ano demorava tanto a passar! Como era difícil esperar por um novo Natal! E ir dormir à meia-noite era um feito a ser relatado orgulhosamente aos colegas de escola no dia seguinte, já que esta era uma hora mítica, muito tarde da noite, e também recheada de símbolos espirituais; era a hora do medo, a hora do terror, um momento mágico que a gente temia presenciar. Era melhor estar dormindo do que ter a consciência de ser apanhado desprevenido pela meia-noite.
Pois bem, poucas décadas se passaram, e cá estou no turbilhão da vida adulta, sofrendo /desfrutando a vida nos tempos da globalização. E nestes 30 anos, vivi mais mudanças que meu pai em seus 89 anos de vida jamais sonhou. Alguns exemplos:
· O telefone que era coisa de gente rica, hoje é onipresente (em minha casa temos um fixo e mais 4 celulares). Se antes tínhamos que ir ao telefone, hoje o levamos conosco o tempo todo.
· As viagens, antes tão custosas e demoradas, hoje se tornam cada vez mais acessíveis, reduzindo o planeta Terra a um grande quintal. Eu mesmo tive a oportunidade de visitar Cingapura, com escala na África do Sul, levando pouco mais de 24 horas da porta de casa até o hotel onde me hospedei. E foi nesta viagem também que experimentei pela primeira vez uma sensação curiosa: devido ao fuso horário de 11 horas, eu falava com minha família por telefone quando para mim era a manhã de um dia, e para eles, em nossa casa, ainda era a noite do dia anterior. Este deslocamento espacial somado a esta espécie de viagem no tempo foi bastante perturbadora, e alterou para sempre minha percepção espacial e temporal.
· O centro da cidade hoje já não é mais tão central, é quase uma periferia competindo com os múltiplos espaços de compras, negócios e lazer, e quando o visito, levo poucos minutos – se o trânsito ajudar – para chegar, dirigindo meu carro.
· O tempo encolheu, ou acelerou, e eu e todos que conheço vivemos com a incômoda sensação de que o ano está passando muito rápido, a semana nunca é suficiente pra se fazer tudo o que precisamos, o dia é muito curto, e a noite... a noite morreu, assassinada pelas luzes onipresentes, pela TV que não sai mais do ar – onde estão aquelas listras verticais coloridas que se via quando se ligava a TV de madrugada?! – e pelo comércio que funciona 24 horas. Dormir antes da meia-noite é proeza que raramente consigo já faz muitos anos.
· E a Internet, esta é uma personagem central nesta história toda. Ela é a responsável por uma overdose de informação que também contribui para o achatamento do espaço-tempo. Uma pesquisa escolar, por exemplo, que na minha infância requeria o deslocamento até uma biblioteca, e horas de pesquisa em livros, agora é feita por meus filhos com alguns cliques no Google. Em poucos minutos, consegue-se a informação, as imagens e tudo o mais. Ou seja, do nosso lugar – nossa casa – conseguimos viajar por diversos espaços e coletar conteúdos para os estudos das crianças. A comunicação por e-mails e programas de mensagens instantâneas aproxima-nos de amigos separados por milhares de quilômetros, tornando possível o contato diário entre quem antes tinha que se contentar com a longa espera por cartas. As imagens de satélite nos transportam em segundos para qualquer lugar do globo. Ao mesmo tempo, vivemos estressados com a impossibilidade de responder a todos os e-mails, e empobrecidos com a superficialidade dos múltiplos contatos dos sites de relacionamento. Nunca tivemos tantos amigos, mas em alguns casos, nunca fomos tão solitários. E se hoje tenho acesso em um dia a mais livros e músicas do que conseguia ver em um ano, também não tenho mais a mesma intensidade na apreciação deles. Quando eu gravava uma fita cassete nos anos 80, copiando um LP de algum amigo generoso, eu ouvia aquelas músicas por um ano. Hoje carrego em meu pendrive mais músicas do que sou capaz de ouvir em um mês, nem sei direito o que tenho lá.
Todas essas reflexões calcadas na minha experiência pessoal comprovam a tese de Renato Ortiz, segundo a qual “as transformações atuais (capitalismo flexível, indústrias culturais transnacionais, mundialização da cultura, avanços tecnológicos), incidem diretamente na maneira de se conceber as formas espaciais" cf. Ortiz (2008), p. 75. Pois existindo neste tempo de pós-modernidade, particularmente nestes últimos 30 anos, deparamo-nos com uma visão de espaço diferente daquela que nos legaram nossos avós e pais. E não só de espaço, mas também de tempo, como Stuart Hall nota ao dizer que o espaço-tempo se comprime, de modo que “se sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas” cf. Hall (2006), p. 69. O mesmo Hall observa que “o tempo e o espaço são também as coordenadas básicas de todos os sistemas de representação”, e que “diferentes épocas culturais tem diferentes formas de combinar essas coordenadas espaço-tempo.” Hall (2006), p. 70.
É fato que minha concepção do espaço e do tempo é hoje bastante diferente daquela que eu tinha na infância, e que eu compartilhava com minha família. Não tenho nenhuma dificuldade em perceber que muitos lugares que nós dizíamos que ficava longe, hoje consideramos muito perto, pois a noção espacial se modificou significativamente. E aquilo que antes era chamado de tarde (meia-noite, por exemplo) já não é tão tarde para nós, e o que era rápido, nesta época viciada em velocidade, hoje é considerado muito lento. Por fim, o que era longe culturalmente, como produtos de outros países, hoje é elemento corriqueiro em nosso cotidiano, já que é normal ouvir música americana em um telefone celular de marca finlandesa fabricado na china, importado por uma empresa brasileira – ou contrabandeado via Paraguai, mas isto nunca se confessa – e vendido nas lojas de Goiânia, parodiando o colega Ricardo Wobeto, em sua postagem no nosso blog.
Onésimo Ferraz do Nascimento, aluno ouvinte.